Carmignac: Nem um passo atrás

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Por Didier SAINT-GEORGES – Administrador Executivo e Membro do Comité de Investimento Estratégico

Há um mês, a leitura da Carmignac sobre a situação dos mercados poderia ser resumida nas quatro observações seguintes:

– Esta crise constitui, de fato, um “cisne negro”, por ser um acontecimento imprevisível com um impacto extremo, tal como teorizado pelo ensaísta Nassim Taleb.
– Os países ocidentais, por sua vez, entrarão na fase de propagação exponencial da epidemia, podendo subestimar a velocidade do risco.
– Os governos não terão outra escolha senão adotar medidas de precaução extremas que serão devastadoras para a atividade econômica.
– Os mercados estão fragilizados por dez anos de contenção da volatilidade e de subvenção do custo do capital pelos bancos centrais.

Em retrospectiva, poderíamos desejar que tivéssemos sido ainda mais radicais na implementação da nossa análise, mas este diagnóstico ajudou-nos claramente a abordar o mês de março com muita prudência.

Consideramos igualmente que “o choque necessitará tanto de soluções monetárias como orçamentais”, fazendo notar que “é provavelmente nos Estados Unidos que deverá antecipar a ação mais rápida”. Deste ponto de vista, as esperanças materializaram-se: a FED retomou rapidamente um programa de flexibilização monetária ilimitado, depois o Banco Central Europeu fez exatamente o mesmo, após alguma hesitação, e o Congresso dos EUA acordou, em seguida, um plano de apoio orçamental sem precedentes.

A curto prazo, estes desenvolvimentos permitiram levantar em boas condições uma parte das coberturas inicialmente implementadas. Mas estas decisões extraordinárias foram indispensáveis e constituem uma medida das tensões que prevalecem não apenas nos mercados de ações, mas também, e talvez ainda mais, nos mercados de taxas de juros. Não se pode dizer hoje que o vulcão está extinto, o que justifica a manutenção da nossa vigilância.

O objetivo desta nota é dar continuidade à perspectiva estratégica deste período excecional, do ponto de vista sanitário, econômico e financeiro, para tentar antecipar as suas extensões e ramificações.

A primeira fase da crise está chagando ao fim

Como notamos no mês passado, tanto os profissionais de saúde, como os políticos e os mercados tomaram medidas adequadas à dimensão do evento com bastante atraso. Isto é devido a vários vieses psicológicos bem conhecidos.

Em primeiro lugar, um viés de modelo mental, que tenta ligar sistematicamente um fenômeno que ainda é radicalmente novo a uma experiência passada, como a gripe sazonal ou o SARS, uma dificuldade em reconhecer a realidade do problema, ou que é incapaz de captar a trajetória de crescimento exponencial, com taxa de crescimento de 27% e duplicação a cada três dias, como se um incêndio florestal pudesse ser extinto com um copo de água nos primeiros minutos, enquanto os aviões Canadair podem não ser capazes de fazê-lo algumas horas mais tarde. A reação tardia causada por esse viés mental foi devastadora para a economia e para os mercados em 2008, e será novamente desta vez.

Em seguida, ocorreu um designado viés ”endo grupo” : ao subestimar a interconexão do mundo, levou, primeiro, a que a situação na China fosse vista como distante e sem muitas implicações para a Europa; depois a situação italiana, que só dizia respeito a esse país, e depois, por sua vez, que a situação europeia fosse negligenciada pelos Estados Unidos. Por fim, uma forma de pensamento macaqueador tinha levado um número muito grande de investidores a estabelecerem-se no conforto anestésico das tendências, por mais artificiais que fossem.

Assim, no que diz respeito aos mercados, os dez anos de queda das taxas de juros e da volatilidade tinham sido apresentadas como uma nova normalidade, permitindo tomadas de risco excessivas e fortes efeitos de alavancagem. As famosas análises do economista Hyman Minsky demonstrando que a estabilidade excessiva gera instabilidade, foram convenientemente esquecidas. Esta dolorosa fase de despertar para a realidade parece agora estar chegando ao fim. A velocidade da correção do mercado de ações desde o início do ano, de 20% e 30% em média, reflete inegavelmente uma tomada de consciência séria.

No entanto, uma quantificação viável do choque econômico imediato e de longo prazo ainda é muito delicada, pois nenhum modelo convencional é realmente capaz de medir o impacto real do confinamento necessário de 40% da população mundial em quase 80 países, incluindo 70% da população dos Estados Unidos, por um período indeterminado. Consequentemente, parece-nos plausível que os mercados ainda estejam sujeitos a uma forte volatilidade, antes de podermos antecipar com alguma visibilidade a forma que a próxima fase assumirá.

Como vai ser o dia seguinte?

É preciso ter sempre o cuidado de não concentrar muita atenção na outra margem do rio até que se tenha navegado com sucesso por toda a agitação que nos separa dela. Todavia, não é inútil, enquanto investidores, começar a refletir sobre essa margem.

Em primeiro lugar, nunca é demais sublinhar que esta crise ocorreu num contexto financeiro de grande importância: os bancos centrais aproximavam-se do ponto de exaustão da sua ação sem nunca terem conseguido, particularmente na Europa, reposicionar as economias para as taxas de crescimento nominal (crescimento real mais inflação) anteriores a 2008.

Nos últimos dias, estes mesmos bancos centrais apostaram todas as suas fichas, comprometendo-se sem limites para tentar restabelecer o funcionamento normal dos mercados de dívida, tanto públicos como privados. Até a data, esta aposta parecia ser vencedora, embora ainda não tenha sido completamente ganha. Em qualquer caso, o posto-chave é que os bancos centrais, mesmo que ainda sejam capazes de preservar a integridade do sistema financeiro, já não podem afirmar ser a força motriz por trás de qualquer recuperação econômica.

“Um cenário de desequilíbrios orçamentais fortes e duradouros pode surgir e resultar numa desconfiança em relação ao papel moeda”

Assim, inicia-se hoje uma nova era, na qual os governos terão de fornecer a maior parte do esforço de recuperação, e já estão fornecendo rendimentos de substituição durante o período de inatividade econômica. No entanto, dada a situação financeira precária em sua maioria, que nunca foi resolvida desde 2008, a questão do financiamento deste esforço orçamental sem precedentes surgirá em breve. Uma forte carga tributária sobre o setor privado seria naturalmente contraproducente, enquanto os cortes orçamentais no setor público seriam social e politicamente inaceitáveis. Consequentemente, parece que está para surgir um cenário central em torno de desequilíbrios orçamentais fortes e duradouros, que irão empurrar irremediavelmente os bancos centrais para o papel de compradores de dívida pública, desta vez como primeiro recurso, de modo a manter os custos de financiamento em níveis toleráveis.

Note-se que esta mudança de regime para o agravamento dos déficits orçamentais financiados diretamente pelos bancos centrais a taxas muito baixas seria particularmente complicada no caso de um ressurgimento das previsões de inflação. Por enquanto, as forças deflacionistas parecem suficientemente fortes, tanto estrutural como ciclicamente, para que esta perspectiva pareça remota, mas o risco não pode ser ignorado. Uma outra ramificação deste novo regime poderia assumir a forma de uma crescente desconfiança em relação ao papel moeda, que será agora impresso abertamente para financiar os déficits públicos. Isto abriria potencialmente a porta a uma fase de instabilidade monetária, em que os ativos reais, e o ouro, que vem naturalmente à mente em tal cenário, sairiam beneficiados.

“O choque de confiança sofrido por todos os agentes econômicos não parece ser propício a uma recuperação em V.”

O dia seguinte, parece-nos, também poderia ser caracterizado por uma forte histeria de comportamento, após o enorme choque de confiança sofrido por todos os agentes econômicos. Como indicamos no mês passado, “é próprio da natureza humana procurar abrigo depois da tempestade”. Parece-nos igualmente provável que as pessoas queiram aumentar a sua taxa de poupança líquida no futuro (nos EEUA, 53% da população não tem poupança de precaução), os governos queiram relocalizar a produção de bens recentemente considerados “estratégicos”, as empresas queiram desistir de alguns dos encantos das cadeias de fornecimento just-in-time e os investidores queiram redescobrir os méritos das margens de segurança quando assumem riscos.

Esta perspectiva não nos parece propícia a um aumento das margens das empresas, nem a uma recuperação em “V” da atividade econômica global, uma vez terminada a crise sanitária (o que parece ser confirmado pelas primeiras estatísticas econômicas da China).

Para os investidores, poderá significar o fim do milagre da gestão passiva e, pelo contrário, fará redescobrir os méritos de uma gestão ativa, capaz de gerir os riscos de mercado e de selecionar empresas capazes de se diferenciarem a longo prazo.

O que fazer?

A instabilidade dos mercados, que deve continuar no curto prazo, incentiva-nos a alargar as estratégias de cobertura de risco a todas as classes de ativos, embora com uma gestão tática ativa. As carteiras de ações subjacentes, por outro lado, são muito estáveis, em grande parte agrupadas em torno dos temas da transformação digital, ela própria aplicada em setores tão diversificados como a distribuição, incluindo alimentação, saúde ou entretenimento, especialmente jogos na cloud.

A China, cujo saldo da balança corrente se beneficiando da queda dos custos energéticos e do colapso do turismo chinês no estrangeiro, é um terreno de investimento privilegiado nestas áreas, graças ao sua estruturao econômica interna. Finalmente, a redução do risco sistémico pelos bancos centrais nos últimos dias permitiu algumas compras de rendas fixas de empresas em muito boas condições.

Assim como o sacrifício exemplar dos profissionais de saúde e a disciplina de cada um de nós será bem-sucedida, apesar das condições extremamente difíceis em que a epidemia será superada, gestores de ativos não devem abdicar do foco na gestão de risco e nas convicções de longo prazo, a fim de melhor defender os interesses dos clientes investidores.

Estratégia de investimento

Ações

Esta crise de saúde pública destacou o ambiente frágil em que os mercados têm evoluido há vários anos. Com efeito, os anos de política monetária excepcional tiveram o efeito de conter a volatilidade e orientar os investidores para ativos de risco. Consecutivamente, uma vez ocorrido este violento choque deflacionista criado pela queda da procura e agravado pelo choque petrolífero, os mercados acionistas entraram em colapso indiscriminadamente. Para fazer face a este súbito ressurgimento dos riscos financeiros e econômicos, os bancos centrais e os governos

anunciaram medidas maciças que resultaram em uma pausa nos mercados, permitindo assim uma reexposição parcial e tática aos mercados acionistas das nossas carteiras.

Todavia, dado que as medidas de apoio orçamental são mais uma fonte alternativa de receitas do que medidas de estímulo, concentramos a carteira de ações em empresas com perfis de crescimento pouco sensíveis ao contexto macroeconômico. Paralelamente, mantemo-nos afastados de empresas altamente endividadas, dada a pressão que a interrupção das operações poderia colocar sobre a tesouraria de algumas delas.

Mantemos igualmente uma exposição às ações chinesas à medida que o país emerge gradualmente do confinamento e a balança de pagamentos melhora. Contudo, a nossa exposição está limitada às empresas nacionais da “nova economia”.

Esta carteira de empresas internacionais é complementada por uma gestão muito ativa da exposição a ações num ambiente suscetível de se manter de forma duradoura e instável.

Taxas

Os mercados de renda fixa sofreram uma perturbação profunda durante o período em todas as subclasses de ativos. A escassez de liquidez nos mercados de crédito, seguida de receios de uma crise de solvabilidade, levou a um forte aumento das margens de crédito, mesmo nas melhores qualificações de risco de crédito. A dívida soberana de países considerados portos seguros também foi afetada, tendo o mercado de títulos de dívida pública dos EUA, o mais líquido de todos, estado sob uma pressão muito forte. No entanto, a ação maciça e rápida dos bancos centrais, particularmente da FED, permitiu uma redução da pressão.

Em relação à nossa exposição aos títulos de dívida pública, permanecemos muito prudentes, tanto na parte core como na não core. Embora as medidas anunciadas pelo BCE apoiem a dívida periférica europeia, não acreditamos que esta ofereça atualmente um risco/retorno favorável, quando se espera que os níveis da dívida aumentem e que o crescimento seja particularmente fraco. Assim, beneficiámos do retorno da liquidez proporcionado pela ação do banco central para reduzir ainda mais a nossa exposição.

Do lado do crédito, estas soluções de substituição de rendimentos oferecidas por vários governos para evitar uma depressão permitiram reduzir o risco de solvabilidade dos melhores emitentes, permitindo-nos assim voltar seletivamente a esta classe de ativos.

Por último, mantemos um risco reduzido na dívida emergente. Com efeito, muitos bancos centrais emergentes continuam a sofrer pressões significativas sobre a sua liquidez em dólares, o que constitui um ponto preocupante de fragilidade.

Divisas

O dólar revelou ser muito procurado durante o período, tanto como meio de pagamento como moeda de reserva. As fortes tensões no mercado obrigacionista norte-americano levaram a FED a injetar liquidez em proporções sem precedentes. Agora que a restrição de liquidez do dólar parece ser contida por uma ação da FED que se apresenta como ilimitada, o movimento de apreciação da moeda norte-americana deverá ser mais limitado.

Consequentemente, mantemos uma exposição maioritária ao euro, a moeda de referência das nossas estratégias, a fim de limitar o risco cambial neste ambiente ainda incerto. Mantemos igualmente a exposição ao iene pelas suas características de ativo seguro, a fim de reforçar a construção da nossa carteira.